Quantas protagonistas gordas você já viu?

Quantas personagens gordas você já viu em produções audiovisuais que não eram retratadas como desleixadas, doentes, tristes, sujas, compulsivas ou eram simplesmente um alívio cômico? Personagens que pudessem ser dignas de serem amadas, respeitadas? Que não fossem vilãs, que não precisaram emagrecer para serem aceitas?  

Quantas personagens gordas já te impressionaram, te inspiraram, te despertaram identificação e empatia? 

Por que temos tanta dificuldade em imaginar mulheres gordas felizes, independentes, bem-sucedidas, doutoras, empresárias, atletas, artistas, bonitas, saudáveis?  

Não é porque elas não existem. Tem muita gente gorda talentosa por aí… Lizzo. Barbie Ferreira. Jéssica Balbino. Malu Jimenez. Ellen Oléria. Tássia Reis. Thomaz. Thais Carla. Amber Riley. Júlia Del Bianco. Ellen Valias. Mariana Xavier. E muitas, muitas outras! 

Mulheres têm sua capacidade profissional questionada frequentemente por causa de seus corpos. Em julho de 2021, a revista Exame divulgou uma pesquisa intitulada A Contratação, a Demissão e a Carreira dos Executivos Brasileiros, realizada pelo Grupo Catho, em 2005, que identificou que 65% dos presidentes e diretores de empresas tinham algum tipo de restrição para contratar pessoas gordas.  

Em setembro desse ano, o jornal Estado de Minas divulgou outra pesquisa, chamada Pesquisa Mapeamento da Gordofobia no Brasil, promovida pela jornalista Thamiris Rezende, que aponta que mais da metade dos brasileiros lidam com a falta de cadeiras e mobiliários adequados no ambiente de trabalho e enfrentam o desafio com uniformes que causam constrangimento e falta de disponibilidade de tamanho. Mais de 40% das pessoas têm dificuldade de usar o banheiro no ambiente de trabalho, porque as cabines são estreitas. 

A pesquisa também aponta que mais de 70% dos brasileiros relatam atendimento médico negligente e tiveram a qualidade de vida questionada por serem gordas. Mais de 80% receberam recomendação para perda de peso sem análise prévia de exames. 

Esse tipo de violência tem nome: é a gordofobia. É quando pressupomos que o corpo gordo é um corpo doente apenas por ele ser gordo. Quando a pessoa gorda perde direitos básicos, de ir e vir, por exemplo, quando depende de transporte público e não passa na roleta do ônibus. Quando não possui roupas do seu tamanho ou quando são inacessíveis financeiramente e feias, como se a pessoa gorda não tivesse o direito de se vestir bem. Quando não consegue frequentar lugares públicos ou hospitais porque faltam cadeiras ou macas que sejam confortáveis ou que sejam resistentes ao peso. Quando a pessoa não tem o direito de estar doente sem que seu peso seja apontado como a causa e como se ela fosse a culpada pela própria doença. Quando gordo se torna automaticamente sinônimo de feio. 

A jornalista Simone Blanes aborda na revista Veja de setembro de 2021, uma revisão publicada na revista iScience, do pesquisador Siddhartha Angadi, da Universidade da Virgínia e do professor Glenn Gaesser, da Universidade Estadual Arizona, que demonstra que a prática de exercício físico é mais importante do que a perda de peso para viver mais. No entanto, para pessoas gordas, o direito de se exercitarem fisicamente é negado constantemente, seja pela falta de acesso, seja por profissionais que, em geral, reproduzem preconceitos e não sabem como lidar com a pessoa gorda, vista apenas como um corpo fracassado e não como alguém que possui uma história, habilidades e desejos. Como se o exercício físico fosse, para a pessoa gorda, uma punição e não um direito. 

É importante ressaltar que gordofobia é diferente de pressão estética. A gordofobia é caracterizada pela falta de acessibilidade e de direitos. Já a pressão estética é uma pressão social para que as pessoas se adequem a todo custo aos padrões estéticos irreais impostos pela sociedade. A pressão estética e a gordofobia, apesar de oprimirem homens e mulheres, é extremamente mais cruel com mulheres.  

Também é necessário refletirmos sobre a passabilidade: é como se a sociedade impusesse limites até no quão fora do padrão um corpo pode ser. Por isso, por exemplo, pessoas gordas menores são geralmente mais aceitas que pessoas gordas maiores e pessoas gordas brancas são geralmente mais aceitas que pessoas gordas negras. 

Frequentemente a gordofobia é justificada como uma preocupação com a saúde da pessoa gorda. Por isso, é muito comum que pessoas gordas tenham suas refeições fiscalizadas constantemente por pessoas não gordas, que se sentem no direito de aprovarem ou não aquilo o que ela come. Como se ser magro desse mais autoridade e conhecimento sobre o que é saúde. E como se unicamente por ser gorda, alguém se tornasse incapaz de saber como se alimentar, reforçando o estigma de descontrole, preguiça, incapacidade. Essa fiscalização e esse “cuidado” não acontecem, em geral, com pessoas magras que se alimentam mal. É constante também pessoas gordas receberem parabéns quando emagrecem, mesmo que esse emagrecimento tenha sido às custas de alguma doença. E é aí que cai por terra o argumento de que a preocupação é com a saúde da pessoa gorda. 

Dar nome às coisas é muito importante, para que elas possam fazer parte da nossa cultura e cotidiano, para que possamos identificá-las e refletir sobre elas. Por isso, discutir sobre a gordofobia, inclusive com crianças, é de extrema importância, porque muitas vezes o estigma social vem das pessoas que mais amamos e estimamos, ou estão nos produtos culturais que consumimos e que contribuem essencialmente para o desenvolvimento e formação de opinião. Em julho desse ano foi lançado o livro infantil “Meu Corpo Pode”, de Katie Crenshaw e tradução da Alexandra Gurgel. Também esse ano foi lançado o livro infantil “Lute Como Uma Gordinha”, da professora, pesquisadora e ativista Malu Jimenez, que também já lançou, dentre outros, o livro “Lute Como Uma Gorda”.  

Na semana passada, a Disney apresentou sua primeira protagonista gorda, no curta-metragem “Reflexo”: a bailarina Bianca. Talvez tenha demorado muito para que isso acontecesse. Talvez ainda demore algum tempo para vermos uma super-heroína gorda, protagonistas gordas que falem não só das suas dores, mas de toda a complexidade que é ser humana. Esperamos que em breve possamos responder às perguntas do início desse texto com muito mais referências, até perder a conta, porque quem pouquíssimo ou nunca se viu representada nos produtos culturais que consumiu a vida toda é que sabe a importância de ter alguém, que, só por existir e ocupar aquele espaço, te mostra que é possível você chegar ali e onde mais você desejar. 

 

 

 

Lella Ganimi é atriz, dubladora, narradora, locutora, jornalista e contadora de histórias. Formada em teatro pela Escola Técnica Estadual de Teatro Martins Penna e em Comunicação Social, com especialização em Televisão, Cinema e Mídias Digitais pela Universidade Federal de Juiz de Fora-MG. Produtora cultural com ampla experiência em dublagem e teatro. Artista inquieta, é apaixonada por dançar, livros, gatos, cultura, dramas sul-coreanos, culinária vegetariana e cor de rosa.

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